por Ricardo Gomes*

Crianças da Rocinha durante manifestação. Foto por Chistophe Simon/AFP Photo.

Mesmo entre a fumaça do gás lacrimogênio deve surgir -e sempre surge- o desejo de querer mais, de não aceitar que não se pode arriscar tudo por uma outra vida.

A violência constituinte que tomou as ruas do Brasil nos últimos dias destrambelhou todo o andamento lento da política formal. As forças foram para a rua e o imponderável desarticulou discursos e práticas, tornou real o que era impossível e assim revitalizou a política. Essa violência constituinte transpassou todos, o inconsciente da luta rasgou toda a cidade. Ela, que nunca esteve morta, soube se juntar numa multidão sem síntese, num grande e intensivo desejo de outro mundo.

A Favela, espaço insurgente que num movimento errático escreve suas geografias monstruosas num território que não devia ser o seu, praticando uma desterritorialização do espaço estatal, carrega a longa história de uma diáspora que majoritariamente não aceitou entrar num processo de constante endividamento/submissão a que todo homem civilizado deve sucumbir. Ser civilizado é sucumbir a um processo penoso de endividamento, e de consequente culpabilização pela dívida original. Processo que não se esquece, que não permite esquecimento, que marca os corpos em relação a uma lei transcendental que é preciso obedecer e sempre lembrar. Não devemos esquecer que é justo isto que censuram aos populares desavisados, ‘eles dançam e cantam para esquecer’.

Dessa terrível inveja e ressentimento é formulado o ‘eu’, unidade substancial que existe para referendar a dívida transcendente, que só existe quando obedece. Devedor seguro de seu bom comportamento, cabisbaixo, convicto da impossibilidade geral de não ser assim. Por outro lado, mas não em oposição, ou para ser mais preciso, no meio disso, temos a experimentação, o improviso, o riso leve que potencializa o grito mais intenso de dor e sua superação, a criação coletiva. A experimentação nos atravessa, a favela está nas ruas porque ainda não sabemos o que fazer e mesmo entre a fumaça do gás lacrimogênio deve surgir e sempre surge o desejo de querer mais, de não aceitar que não se pode arriscar tudo por uma outra vida.

Na Maré, esta forma de protesto vivo chegou em um dos seus pontos mais radicais. Depois de uma manifestação popular dos moradores do complexo de favelas da região, a polícia reagiu de maneira absolutamente violenta, como convém a esta força do Estado em seu direito irrestrito de escolher quem deve ou não morrer. Matou, por vingança e por prazer, para tentar restabelecer uma paz que nunca existiu, para tentar formalizar uma harmonia que nem eles acreditam. A polícia age mais pela força em si do que em nome de algum suposto processo civilizatório. Não digo que este processo não exista, ao contrário, é realmente ele que é o pilar da ação policial, porém, para a polícia não é ele que legitima esta ação, são dois extremos que não se olham. Vemos hoje uma ‘cultura’ quase independente do Estado que aplica toda a violência. Excesso negado que não cessa de aparecer cotidianamente, a BOPE é sua efetividade estatal, mas é só um dentre outros lugares onde isso acontece. Talvez seja o mais evidente. O que é preciso afirmar é que a violência utilizada do BOPE não é só a violência do aparelho estatal, ela está disseminada como prática cotidiana, é a não aceitação da alteridade que está em jogo, no BOPE ou nas ruas, no Estado repressor ou em coletivos políticos que também não sabem lidar com as diferenças concretas.

Não há massacre de multidões insurgentes que não necessitem de uma voyeur. O massacre é feito para ser visto, para ser vivenciado e deliciado. Se por acaso, a tv não mostra ao vivo é só por uma questão de estratégia da visibilidade. Não é o momento adequado para usar tal imagem, os olhos e estômagos ainda não querem saciar este ritual de purificação e ordenamento. No dia seguinte, porém, todos os jornais estampam o massacre a partir de suas próprias narrativas. A narrativa de quem quer transformar tudo neste ritual necessário onde o que não é reconhecido deve ser extirpado. Eles precisam deixar claro: quem não participa do processo de submissão, quem não reconhece as tais leis transcendentais às quais é preciso se submeter, quem causa prejuízo ao andamento de toda a engrenagem sociopata e identitária, deve pagar. Quem destrói o laço, sempre tão frágil quanto extenso, da ininterrupta exploração deve sofrer as consequências de ter acenado com um desejo por diferença. O pagamento deste prejuízo, desta audácia, se transforma num ritual visível e marcante, reafirma uma condição supostamente imutável e vinga (às escondidas, porque não se trata de vingança vulgar e sim do processo de reafirmação de um formato social) o medo de quem nunca tentou, fortalecendo sua convicção submissa.

Não tratamos aqui da favela como local ideal de convivência, mas sim como modelo aberto de experimentação para outras formas de vida. Sabemos dos problemas e limites deste modelo, do sexismo, as tentativas de hierarquização violenta e outras coisas mais. Mas isto torna a favela algo ainda mais importante. Primeiro por que trata-se de não permitir análise ou prática que tenha uma fundamentação puramente reflexiva, tudo surge das lutas concretas. A teoria não deve se afastar da constante afirmação da vida. O que ela faz é um movimento complexo de cooperação, de ressonância, ou seja, trata-se de uma prática teórica revolucionaria. Assim não podemos imaginar que possa haver algum lugar de pura liberdade, lugar assim só serve para criar modelos vazios e abstratos que não cessaram de ser no máximo insuficiente e no mínimo violentos, pois não permite o desdobramento concreto das diferenças. Não existe progresso, existe produção, não temos que saber o que é ou não é a favela, mas sim como ela está em constante processo de produção de si e a quê isto serve. Assim, consideramos este espaço como lugar privilegiado porque, como já dissemos, trata-se de um espaço de invenção ‘por natureza’. Não há vida que não seja desde sempre luta, resistência e produção ao mesmo tempo. Este impulso ziguezagueante se articula com as outras forças vivas em toda a cidade. Isto que corta a cidade irrompeu no asfalto, e se torna especialmente significativo se temos em conta o processo de remoções forçadas e “brancas” via especulação imobiliária que vivem as favelas. De onde a vida não poderia ter ficado, ela foi para onde ela não deveria ter ido: voltou às ruas, para ajudar a disputar a cidade.

Quando os moradores do complexo da Maré foram mais uma vez para as ruas, confiantes nas ultimas manifestações do Rio de Janeiro, sofreram duríssima repressão. Repressão inimaginável mesmo para quem esteve nas ruas estes últimos dias. Por volta de 10 moradores foram assassinados pela polícia depois que traficantes teriam supostamente se aproveitado da manifestação para promover um arrastão na Av. Brasil. O BOPE entrou na comunidade para reprimir tal ação. Neste primeiro confronto um sargento do BOPE e um morador acabaram sendo mortos. Depois o que se seguiu foi a sistemática lógica de caça e destruição que o BOPE utiliza em todas as comunidades do estado. O povo se revoltou e foi para as ruas das favelas do complexo da Maré exigindo o fim do massacre pois o BOPE prometia outra invasão à noite. As pessoas resistiram bravamente e, numa estratégia que articulou ruas e redes digitais, conseguiu expulsar o BOPE da comunidade e a promessa de um dos Comandante da PM de que naquela noite o BOPE não voltaria mais. Ora, o desejo por mais democracia que bagunçou o consenso social e que permitiu a continuidade das manifestações esteve na Maré e não pode ser destruído. A força assassina do Estado foi expulsa por mais uma manifestação que deixa claro quanta potência temos, juntos e múltiplos. Devemos seguir, fortes, sem paranoias, com amplos processos de que visem quebras de paradigmas e pequenos grupos e ações contra coisas fundamentais e específicas como a imediata desmilitarização das polícias e outras mil coisas. Seguir no passo da multidão irredutível que colocou em suspensão a suposta dicotomia entre publico e privado, descortinando a relação de exploração urbana que existe entre políticos e empresários. É a hora da potencia dos heterônimos em favor da vida, contra a política racista e assassina!

É certo dizer que as vitórias se relativizam depois da morte de moradores da Maré, mas isto não deve servir para desestimular a força das lutas, ao contrário, deve servir para, além de repudiar veementemente quem praticou tais atrocidades, perceber que estamos realmente incomodando o consenso que uma vez imaginou ter ganho tudo. Imaginou que as forças de toda a população haviam se submetido aos pactos de governabilidade de que ela nunca participou. A cidade sofre, mas continua se movendo e produzindo possibilidades de revitalizações potentes. Por isso mais do que nunca é hora de continuar nas ruas, não devemos ter medo, estamos apenas esquentando, ainda podemos causar muitos problemas ao poder constituído, ainda podemos ter muitas vitórias como foram a redução das tarifas de ônibus, a expulsão dos policiais da Maré e mesmo a nossa grande junção contra o estado de coisas atuais, enfim, continuemos que amanhã tem mais e depois também, e depois e depois e mais e mais… Vem para a rua, vem todo mundo!!!!!


*Ricardo Gomes colabora livremente com o blog deste coletivo.